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A eletricidade natural de estar vivo (parte 1)

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Os pelos do braço se arrepiam. Nenhuma explicação científica diminui meu encanto por esse fenômeno. Não apenas pela beleza do colo, da nuca, do peito de uma mulher arrepiada, mas pela eletricidade que acontece sem controle, especialmente quando a causa não é frio, tesão, medo ou alguma emoção específica. (No último treinamento de Taketina, aconteceu algumas vezes enquanto tocava berimbau e espiralava ao redor do surdo. Ou durante o dia, do nada. Aprendi como falar isso em inglês: goose bumps.)

O arrepio é uma das maiores evidências de que há algo vivo em nós. Quando perguntamos “Como você está?”, a pessoa pode até pensar nos fatos da vida, mas acontecimentos e situações não tem nada a ver com felicidade ou sofrimento. O que vai definir a resposta positiva é o calor no peito, o brilho nos olhos, a respiração profunda, o sorriso silencioso, a experiência de energia fluindo, prazer, leveza, horizonte aberto, presença lúdica, espaço para ação, lucidez e criação de sentido. A resposta negativa virá com respiração ansiosa, confusão, contração, incapacidade de atribuir sentidos, seriedade, olhos opacos, peso, dor, fechamento, poucas opções de reação, energia interrompida, oscilante ou dispersa.

É por isso que nesse texto vou colocar no centro aquilo que consideramos mais periférico. Trocar efeito e causa. Inverter a visão que atribui nossa felicidade ou sofrimento a determinados acontecimentos que supostamente diminuem ou aumentam nossa experiência de bem-estar. Se nossa oscilação emocional é sempre tratada como objeto passivo, como poderemos cultivar autonomia de energia? Em vez de deixar o bem-estar no final da frase, vamos colocá-lo logo de cara como sujeito: é a eletricidade que define se surge felicidade ou sofrimento, não importa em qual experiência.

Em vez de olhar para as mil situações, cenários e configurações da vida, vamos respirar e sentir como nosso pulmão muda. É com o pulmão que sofremos e é com o pulmão que podemos ter alguma chance de encontrar liberdade e felicidade nas relações.

O sequestro de nossa eletricidade

A dinâmica é sabida. O bandido captura a pessoa, joga dentro de um cubículo e diz: “Agora você vai operar sua mente, sua energia, seu corpo dentro desse quarto. Você vai continuar respirando, sentindo, pensando, tudo igual, mas agora você está participando desse jogo chamado sequestro, então vai respirar, sentir, pensar como alguém sequestrado. Tudo bem?”. Ele não diz bem isso, mas é isso o que ele diz.

Todos os jogos, histórias, mundos, realidades, filmes que construímos em nossa vida são sequestros sutis. Ao colocar o anel, o recém-marido diz: “Agora você vai operar sua mente, sua energia, seu corpo dentro dessa relação. Você vai continuar respirando, sentindo, pensando, tudo igual, mas agora você está participando desse jogo chamado casamento, então vai respirar, sentir, pensar como alguém casado. Tudo bem?”. A chefe, o professor, a amiga, o sócio… todos com a mesma fala.

Uma vez dentro de alguns mundos, incorporando algumas identidades, o brilho no olho, o sorriso aberto, a respiração profunda, o calor no peito passam a surgir sob condições. A eletricidade natural agora é a eletricidade de um personagem específico.

É como se transplantássemos nosso coração em um bonequinho 2D que vive na tela do videogame. Diante da possibilidade de controlá-lo e principalmente de usá-lo para controlar seu mundo, deixamos que ele nos controle. Enquanto os movimentos desses pixels nos alegram, tudo ok. O problema começa quando o mundo se desintegra, o bonequinho morre ou apenas perdemos o nível de controle esperado.

Nosso coração sabia bater sozinho, mas passou tempo demais sendo comandado por um coração virtual. Sabíamos respirar, mas passamos tempo demais respirando em função de nossa namorada. Tínhamos eletricidade, mas a vinculamos à identidade de marido. Agora, para ativar a energia, precisamos mover o marido. E quando a relação acaba? Ao tentar reconquistar a esposa, tudo o que ele deseja é voltar a ser marido.

Sofrimentos virtuais

Assim que começamos a respirar mal, comer e dormir pouco (ou demais!), assim que perdemos eletricidade e brilho no olho, sentimos uma necessidade urgente de consertar o jogo, ressuscitar o personagem, remontar o mundo. A última coisa em nossa lista de prioridades é resgatar a capacidade de respirar, voltar a sentir nossa eletricidade natural, deixar o olho brilhar sem depender de nenhuma visão especial, desentortar o corpo, liberar a mente das condições que a asfixiaram – ironicamente, como já escrevi, é essa a melhor saída para qualquer sofrimento.

Quanto mais dor, mais colocamos nosso foco no personagem, mais tentamos controlar. O casamento que começou como uma brincadeira, uma fantasia, um faz-de-conta, virou realidade sólida, séria, inescapável. A identidade que começou como encenação virou nossa essência. É assim que o sofrimento virtual de um personagem vira dor no peito, falta de ar, vontade de se matar. A confusão se torna cada vez mais real a ponto de transbordar para outros corpos e mentes ao nosso redor.

Tudo acontece como se tivéssemos uma vela queimando dentro de um copo em nossa mão. Sem perceber os limites do copo, com foco excessivo no fogo, sem espaço para nos mover, ficamos com o dedo muito próximo, queimando, doendo. Alucinamos: a casa inteira está pegando fogo! Saímos correndo, nos debatemos, deixamos cair o copo… e aí sim a casa inteira pega fogo.

Em pouco tempo a alucinação vira realidade, basta um pouco de insistência, hábito, compulsão em acreditar na concretude das coisas como elas nos aparecem. Os sofrimentos se tornam reais na exata medida em que não desconfiamos de sua virtualidade.

A base das inteligências

Ora, o aparente sequestro não tem nada de negativo. Na verdade, não é sequer um aprisionamento. Só podemos respirar, sentir, pensar como namorado, pai, irmão, filho, sócio, amigo, chefe, aluno e professor, durante um só dia, porque nossa mente e nosso corpo são livres para operar dentro de universos diferentes.

Ao contrário do que muitos dizem, a melhor definição etimológica da palavra inteligência não é “escolher entre”, mas “ler dentro”. Quando chamamos alguém de inteligente, estamos apontando para sua capacidade de entrar em um mundo, se movimentar com alguma coerência (seja respondendo a estímulos ou criando sentidos) e operar sob condições. Exatamente como faz um jogador de futebol, de Super Mario, de peça de teatro, de casamento, de empresa…

Você está em um show de rock. Depois vai para um jogo de poker. Depois transa com uma garota na bancada do escritório. A mesma mente, o mesmo corpo, operando sob diferentes condições, mundos, horizontes de sentido, lógicas, coerências, estímulos, possibilidades de ação. No show de rock, sequer surge a ideia de um flush. No poker, não faz sentido ficar pulando e balançando a cabeça. No sexo, o objetivo não é bem aumentar o pot e ganhar (ok, às vezes é).

Mente e corpo transitam entre diferentes mundos assim como transitam entre diferentes identidades assim como transitam entre diferentes estímulos sensoriais, emoções, pensamentos, micro fenômenos internos. Ver é operar com olhos e inteligência da visão em um mundo visual. Quando nossa mente opera com ouvido, lidamos com sons. Quando opera com conceitos, pensamos. Quando opera com ciúme, surge um horizonte de novos números no celular, emails e passados alternativos. Quando opera como Super Mario, aparecem canos de teletransporte, flores de fogo e a motivação de salvar uma princesa.

A base de todas as infinitas inteligências é pura e simplesmente a capacidade de ser inteligente. Nossa mente parece ter essa sabedoria natural de entrar, iluminar, conhecer, abrir espaço, dar sentido, se mover. Quando fazemos isso à luz de velas em um barzinho de jazz com uma morena de cabelo cacheado, dizem que estamos seduzindo. Quando nossa mente opera suada algum tempo depois, dizem que estamos transando. Quando nossa mente opera sob o domínio da raiva, dizem que estamos brigando. Em todos os momentos, estamos com a mesma mente, usufruindo de sua infinita plasticidade, de sua natureza livre, de sua habilidade cognoscente que detecta, se agarra, se identifica e age com padrões, caminhos, linguagens…

É por isso que brilho no olho, calor no peito e eletricidade têm sempre a mesma qualidade, não importa em quais mundos ou com quais identidades e inteligências estamos operando. Na verdade, o brilho no olho é igualzinho em todas as pessoas.

Ao reconhecer o mesmo tesão de estar vivo em qualquer pessoa feliz e o mesmo pulmão desesperado em qualquer pessoa aflita, começamos a nos relacionar de modo impessoal com a eletricidade natural: ela não é nossa, ela não é de ninguém, não está dentro ou fora de nós. Com essa dúvida, podemos explorar os limbos entre os vários mundos e identidades.

Quando paramos e cortamos boa parte dos estímulos mais comuns que nos entretêm e movem nossa energia, o que sobra? Quando ficamos sozinhos, sem relação alguma para nos definir, quem nós somos?

Continua…


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